domingo, 23 de agosto de 2009

À beira do abismo

"Eu adormeço às margens de uma mulher: adormeço às margens de um abismo."
Eduardo Galeano

Tenho manchado meus lábios com vinho e murmúrios
e tenho te desejado mais que a mim,
mais que meu futuro próximo e pródigo,
ou mais que a cidade: ruas
e avenidas
que te busco e sei que não estás,
sei que a esta hora estás
em tua casa, oculta, dentro de livros
e personagens: trechos de teu corpo que não li
e não lerei - quem sabe - nunca.

No entanto, te desejo
e isso dói mais aos domingos.
Te desejo como nunca
havia desejado,
mas te escrevo e te esqueço
porque em meus lençóis de mármore
tu não estás.


Palavra (de teu
nome que)
como um rio cresce
cortando cidades, passando pela mata,
por casas
por infâncias: como um
rio
teu nome
cresce dentro de mim
e vai batendo e batendo e batendo
e corro contra as ruas, contra os parques,
praças
corro dentro de mim: rodopio em meus planos,
giro e danço em minha arquitetura de vento:
ventanias
que te levam.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Poema feito a giz

A fruta no pomar
está alheia a tudo que a circunda,
exceto seu bojo de açúcar e textura,
que cresce
e vai tomando a forma de algo palpável,
de alguma coisa que se possa dizer fruta
ou açúcar
ou pele de fruta: alguma coisa
que se sinta e se prevaleça sobre o mundo.

Uma fruta no pomar
é mais que um avião
mais que um automóvel.
Flora
reduzida a sua mínima parte: vívida
pele
que cada vez mais se assemelha a aurora: delira
lentamente
nas horas da manhã
para então morrer no moer do açúcar e
do tempo.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

360 graus

São tempos de depuração: nada fica,
nem mesmo o que foi dito ou escrito,
o que foi registrado, analisado. Nem mesmo
aquilo que foi gravado - não fica.

Nem mesmo os pássaros, os ninhos, as árvores.
Nem as casas, os projetos de vida, mobília ou reminiscências.
Não ficarão as mágoas, os rancores; tampouco a inocência, a prece, o ar.


Nada fica ou ficará: tudo se acaba
no exato instante em que te vejo.

domingo, 9 de agosto de 2009

Documentário

Um pouco dos dedos, dos pômulos, dos dentes, das gengivas. Um tanto dos sonhos, dos beijos, das brigas, das intrigas:

um tanto quase que perdido entre teu corpo e minha alma, entre o vão das coisas que se partem às quatro horas da tarde nas ventanias, nos vendavais, nos verões: coisas que ficaram perdidas
entre manhãs
dominicais: um tanto quanto que quase enlouqueci
quando vi teu
corpo
recender a este cheiro incomparável que é da infância,
um perfume molhado, quase úmido
que percorria minhas narinas, meus músculos, minhas fortificações: escrevi
teu nome
nos pântanos de minhas veias, em meus rios de vertigem, nas minhas cóleras de amor.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Eu

tarde escorre e depois sopra
na espuma da voz
o dia se faz
lentamente
rosto límpido
desfoca
a manhã de verão

passa todo mundo
só não passa meu amor
acho que ficou
pra trás com outro.

I
meu coração perfeccionista
cerzindo dias
em um só

bem sei,
meu coração-válvula
a expirar nuvens
em direções opostas

meu coração hermético
arde na pólvora da alma.

II
um desespero infantil
embutido na alma
é tudo que tenho
agora
essas manhãs que cultivadas à chuva.

III
nas cinzas do teu corpo
as tormentas se reduzem
abrem-se
as cortinas da flor
meus olhos de pétalas
estranham
o mundo

IV
libélulas arrastam
meu corpo
ao precipício:
flutuo
desordenada alma
na ópera de mim.